Enfrentar a fragmentação: Como modernizar o sistema internacional de pagamentos

10 de maio de 2022

1. Introdução

 

Boa tarde. Gostaria de agradecer ao Governador Thomas Jordan e ao Banco Nacional da Suíça pela organização em conjunto desta nossa Conferência de Alto Nível aqui em Zurique.

 

Na 10ª edição deste evento, nossas discussões se concentraram, com razão, numa pergunta fundamental: como assegurar um sistema monetário internacional estável, eficiente e inclusivo que seja adequado à era digital?

 

Esse sistema de regras, mecanismos e instituições que rege os acordos monetários e os fluxos de capitais entre os países vem se desenvolvendo ao longo de décadas. Para que continue a promover a estabilidade financeira e o desenvolvimento econômico em todas as partes, precisa continuar a evoluir e se adaptar num mundo em que as mudanças são rápidas.

 

Basta olhar para a impressionante rede de estradas e ferrovias suíças, com suas pontes e túneis, projetada para terrenos diversos e, em muitos casos, desafiadores. Portanto, também devemos zelar para que o sistema monetário internacional seja projetado para um cenário econômico mundial em constante evolução.

 

Ao mirarmos um futuro digital, o sistema também precisa resistir às forças crescentes da fragmentação.

 

Essas forças se tornaram mais fortes em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. Isso causou não apenas um tremendo sofrimento humano, mas também um choque econômico mundial e um forte aumento do risco de uma “nova Guerra Fria”, de um mundo que poderia se fragmentar em “blocos econômicos”, criando barreiras ao fluxo transfronteiriço de capitais, bens, serviços, ideias e tecnologias.

 

Esses são efetivamente os motores da integração que impulsionaram a produtividade e elevaram o padrão de vida, triplicando o tamanho da economia mundial e retirando 1,3 bilhão de pessoas da pobreza extrema nas últimas três décadas. Assim, a desintegração teria um custo enorme, e as pessoas e países mais vulneráveis seriam os mais afetados.

 

Diante desses riscos, são duas as opções: podemos nos render a tendências que tornarão o mundo mais pobre e menos estável. Ou podemos trabalhar com ainda mais afinco para buscar caminhos para evitar a fragmentação do sistema monetário internacional — assim como devemos colaborar para enfrentar ameaças mundiais como as mudanças climáticas.

 

Precisamos projetar e construir a infraestrutura que facilitará uma maior integração, o que implica, entre outras coisas, intensificar nosso trabalho na área de pagamentos transfronteiriços.

 

Mais especificamente, hoje gostaria de voltar a atenção para o desenvolvimento de uma nova infraestrutura pública para conectar e regular diversos sistemas de pagamento, com o intuito de combater a fragmentação do sistema monetário internacional.

 

Seria uma nova forma de conectar as pessoas, os mercados e as economias no mundo digital.

 

2. O sistema internacional de pagamentos

 

Mas o que eu quero dizer com isso?

 

Precisamos olhar por baixo do sistema monetário internacional — seu alicerce — o que eu chamaria de sistema internacional de pagamentos. Trata-se das “estradas, ferrovias, pontes e túneis” financeiros que possibilitam a troca de moedas e o fluxo de capitais entre os países.

 

Esse sistema abrange as ligações entre os bancos correspondentes; os sistemas de mensagens, como o Swift; as empresas de transferência de dinheiro e as redes de cartões de crédito; assim como os mercados de câmbio e os acordos entre os bancos centrais.

 

Claramente, esse sistema internacional de pagamentos não é perfeito.

 

Os pagamentos transfronteiriços são caros, lentos, opacos e não estão disponíveis para muitos dos que mais precisam deles. Mas por quê? Porque muitas das “estradas” não levam a lugar nenhum, as “ferrovias” funcionam com bitolas diferentes e os “túneis” são mal iluminados. Onde essas redes não são interoperáveis, os intermediários vão construir conexões e ficar com uma parte.

 

Um bom exemplo são as remessas. O custo médio de uma transferência é de 6,3%. Isso significa que cerca de US$ 45 bilhões por ano são desviados para as mãos dos intermediários e não chegam aos beneficiários finais, entre estes, milhões de famílias de baixa renda.[i]

 

Mas existe um desafio ainda maior: o sistema internacional de pagamentos também enfrenta o risco crescente de fragmentação que mencionei.

 

Alguns riscos são estruturais: os provedores privados de dinheiro digital prometem pagamentos transfronteiriços baratos, mas muitas vezes apenas dentro de sua rede fechada de usuários. Outros riscos são geopolíticos: alguns países podem considerar o desenvolvimento de sistemas de pagamentos paralelos e desconexos para mitigar o risco de possíveis sanções econômicas.

 

Esses “blocos de pagamento” só agravariam o impacto de “blocos econômicos” mais amplos, gerando novas ineficiências e impondo novos custos. Isso prejudicaria a produtividade e o padrão de vida em todos os países.

 

Podemos fazer melhor do que isso. Precisamos fazer melhor — e rápido.

 

Assim, a principal mensagem que deixo hoje é a seguinte: os países precisam trabalhar juntos para construir novas “estradas, ferrovias, pontes e túneis”, usando plataformas digitais públicas para conectar os sistemas de pagamentos.

 

Com isso, os pagamentos internacionais seriam mais eficientes, mais seguros e mais inclusivos. O crucial é que isso reduziria o risco de fragmentação.

 

Trata-se de uma tarefa difícil, mas não impossível. Escalar essa montanha valerá muito a pena. E para isso, nossos amigos suíços, mais uma vez, podem ser nossos guias, com seu histórico de cooperação e, literalmente, sua experiência no montanhismo.

 

De fato, precisamos pensar como um montanhista, de três maneiras: usar equipamentos de última geração, adaptar-se ao terreno e confiar em nossa equipe.

 

3. Modernizar o sistema internacional de pagamentos

 

a) Usar equipamentos de última geração

 

Primeiro, precisamos usar equipamentos de última geração, em especial as novas tecnologias. Em nossas discussões de hoje, ouviu-se que enviar dinheiro através das fronteiras pode ser feito de forma praticamente instantânea e a custo algum. Trata-se de uma das principais conclusões de vários testes-piloto dirigidos pelo Centro de Inovação do BIS em parceria com muitos bancos centrais aqui representados, como o Banco Nacional da Suíça.

 

Um componente central desses testes é a infraestrutura pública. Isso envolve plataformas digitais que facilitam a comunicação, a conformidade com a regulamentação, a concorrência entre os provedores de pagamentos e, mais à frente, a liquidação de transações através das fronteiras.

 

Permitam-me dar um exemplo: consigo trocar dez dólares no meu banco em Washington por um token digital, que é então transferido por meio de uma plataforma para um provedor de pagamentos suíço que credita a carteira de um amigo em Zurique. É o equivalente a enviar uma nota de dez dólares pelo correio, mas com toda a rapidez e segurança, e a um custo mínimo.

 

Obviamente, essas novas plataformas públicas continuarão a evoluir.

 

Ouvimos de países de mercados emergentes e em desenvolvimento que há um grande interesse em estender os serviços para além dos simples pagamentos. A plataforma poderia oferecer a troca de uma moeda por outra? Será que pares de moedas menos líquidas encontrariam contrapartes mais interessadas?

 

Em suma, as plataformas de pagamentos poderiam se tornar bem mais úteis para uma gama mais ampla de usuários.

 

Essa possível evolução será impulsionada pela capacidade de programar a plataforma. Por exemplo, uma pequena empresa poderia cobrir o risco cambial relacionado a um pagamento futuro. Ou uma empresa financeira poderia automatizar seus lances num leilão de divisas realizado na plataforma. Abre-se a porta para a inovação do setor privado, a concorrência e o reforço da funcionalidade na plataforma.

 

Além disso, amplia-se a noção de bem público: desde garantir a conclusão da liquidação, até oferecer uma interface de programação padronizada, ou seja, uma linguagem comum para acessar e automatizar os serviços na plataforma.

 

O cume dessa montanha pode estar distante, mas vale a pena explorá-la.

 

É assim também a ideia de uma plataforma que conecte diversas formas de dinheiro que os países usarão e apoiarão legalmente. Isso abrange depósitos de bancos comerciais, mas também poderia abarcar moedas digitais dos bancos centrais e, até mesmo, alguns acordos de stablecoins, desde que sejam bem concebidos e regulados.

 

Essa plataforma é de especial importância para economias com sistemas de pagamentos menos avançados. Ao adotar formas diversas de dinheiro, podemos fazer com que os pagamentos funcionem para todas as pessoas, em todos os países.

 

Mas precisamos de mais do que apenas equipamentos muito bons.

 

b) Adaptar-se ao terreno

 

Isso me leva ao meu segundo ponto: assim como os bons montanhistas, devemos nos adaptar ao terreno. Isso significa construir plataformas que permitam aos países continuar a perseguir seus objetivos de política, sobretudo quando se trata de fluxos de capitais.

 

Como apontei no início, o sistema internacional de pagamentos tem uma relação direta com o sistema monetário internacional. Assim, à medida que os pagamentos se tornam mais eficientes, os fluxos de capitais também continuarão a evoluir.

 

Talvez vejamos um aumento geral dos fluxos, o que poderia impulsionar o investimento produtivo e integrar os mercados. E talvez testemunhemos mais fluxos para países de baixa renda ou para setores que tenham se beneficiado menos no passado.

 

Ao mesmo tempo, mais eficiência poderia implicar riscos: desde um maior contágio do mercado financeiro e efeitos decorrentes da avaliação, até inversões súbitas de fluxos de capitais. Esses riscos seriam especialmente prejudiciais para os países em desenvolvimento com necessidades de financiamento externo elevadas.

 

Para mitigar essas vulnerabilidades, os países estão procurando tomar as medidas fiscais, monetárias, estruturais e legais corretas. E, em alguns casos, estão recorrendo a medidas de gestão dos fluxos de capitais para retardar esses fluxos. Ajudar os países a responder com agilidade é uma razão fundamental pela qual atualizamos recentemente a visão institucional do FMI sobre esse tema.

 

A substituição da moeda é outro risco. Isso ocorre em países onde as famílias e as empresas preferem usar uma moeda estrangeira para fazer operações e poupar. Quando a moeda desejada se torna digital — e, portanto, mais fácil de armazenar num celular do que debaixo do colchão — o risco dessa substituição dispara.

 

Assim, à medida que os pagamentos se tornam mais eficientes, alguns países talvez precisem ter que jogar areia nas engrenagens — na forma de medidas de gestão dos fluxos de capitais — a fim de se protegerem contra a substituição da moeda e criar alguma folga para fortalecer seus quadros monetários e outras políticas.

 

Aqui também surge um risco: pensem em como os ativos criptográficos poderiam ser usados para contornar as medidas de gestão dos fluxos de capitais, minando a estabilidade das economias nacionais e do sistema mundial.

 

Um novo estudo do FMI publicado hoje mostra claramente esse risco. É por isso que estamos instando por uma regulamentação mundial abrangente e coordenada nessa área. Também precisamos de dados e tecnologias melhores, como “Regtech” e “Suptech”, para detectar automaticamente riscos e irregularidades nos fluxos de capitais.

 

Acredito que uma nova infraestrutura pública de plataformas digitais de pagamentos poderia permitir que os países implementassem essas e outras medidas de forma mais eficiente. Desde o início, essas plataformas podem ser calibradas de acordo com as necessidades e objetivos de política específicos de cada país e devem prever medidas apropriadas para mitigar riscos.

 

É assim que podemos nos orientar, de novas e melhores maneiras, pelo terreno em constante evolução das políticas.

 

c) Confie em sua equipe

 

Meu terceiro ponto é que os montanhistas nunca escalam sozinhos. Confiam em suas equipes e em reações e sinais bem ensaiados para lidar com situações imprevistas. Essa abordagem é essencial para modernizar o sistema internacional de pagamentos e mitigar a fragmentação. Acima de tudo, significa acertar na governança.

 

Quem vai ter acesso a essas plataformas internacionais de pagamentos? Em que condições? Quem vai operar, administrar e fiscalizar essas plataformas? Qual vai ser o papel do setor privado? Precisaremos enfrentar essas questões e chegar a um acordo sobre um conjunto de regras claras para o futuro.

 

Uma coisa é clara: a previsibilidade vai facilitar a integração, enquanto o excesso de discricionariedade provavelmente aumentará o risco de fragmentação.

 

Essa pode ser a parte mais íngreme de nossa escalada.

 

Quando se trata de governança, a decisão final acabará competindo aos países. No entanto, organismos internacionais, como o FMI, o Banco de Compensações Internacionais e o Conselho de Estabilidade Financeira, podem cumprir uma função importante. Podemos sugerir soluções concretas, promover o consenso e reunir não apenas as autoridades, mas também as vozes das empresas privadas e da sociedade civil.

 

4. Conclusão

 

Para encerrar, quero me inspirar uma última vez em nossos amigos suíços.

 

Reza a lenda que, em 1291, três montanhistas importantes escalaram uma montanha perto de onde estamos reunidos. Um do cantão suíço de Uri, outro do cantão de Schwyz e um terceiro do cantão de Unterwalden.

 

No topo, cada um assumiu um compromisso com os demais, com regras comuns e com a cooperação diante de ameaças externas.

 

Esse acordo é celebrado como a fundação da Confederação Suíça, há mais de 700 anos.

 

Assim como esses montanhistas, precisamos trabalhar como uma equipe. Juntos, podemos tornar o sistema internacional de pagamentos mais sólido para apoiar o mundo digital do amanhã, para fomentar um sistema monetário internacional que possa trazer mais estabilidade e prosperidade para todos.

 

Muito obrigada!

 


[i] Fonte (custo médio de 6,3%): Banco Mundial: “Remittance Prices Worldwide Quarterly”, Edição nº 40, dezembro de 2021; cálculos do FMI (US$ 45 bilhões, considerando um volume total de mais de US$ 700 bilhões por ano).

Departamento de Comunicação do FMI
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