Governança fiscal europeia: Uma proposta do FMI

5 de setembro de 2022

Endividamento elevado e taxas de juro em alta ressaltam a importância de melhorar a governança para ancorar a política fiscal nos Estados-Membros da UE.

Em virtude do papel central da política fiscal para enfrentar tanto crises recentes como desafios futuros, o apelo para reformar a governança fiscal na Europa é mais pertinente do que nunca.

A política fiscal oferece um apoio essencial quando famílias e empresas sofrem choques de grande impacto, como a pandemia, ou quando a política monetária está restrita. Contudo, isso requer finanças públicas salubres. O endividamento elevado e as taxas de juros em alta estão dificultando as ações dos governos para lidar com as várias prioridades atuais, como os aumentos extremos do custo de vida e a emergência climática.

Nesse contexto, a União Europeia (UE) precisa reformular as suas regras fiscais para ter flexibilidade para adotar políticas ousadas e ágeis, quando necessárias, sem pôr em risco a sustentabilidade das finanças públicas. É essencial evitar crises de dívida que poderiam ter efeitos desestabilizadores amplos e pôr a própria UE em risco. Isso exigirá a criação de reservas fiscais mais robustas durante os períodos de normalidade.

Um novo documento do FMI propõe reformas do quadro fiscal da UE para facilitar a gestão dos tremendos desafios de política.

A revisão deve ser economicamente sólida e politicamente aceitável, fundamentando-se nas lições aprendidas em várias tentativas anteriores de melhorar as regras fiscais. Será essencial equilibrar o respeito pela soberania das políticas fiscais nacionais e, ao mesmo tempo, reforçar os incentivos para a adoção de políticas sólidas para a UE.

A proposta baseia-se em três pilares: revisar as regras fiscais numéricas para considerar explicitamente os riscos fiscais que os países enfrentam e ter uma orientação clara de médio prazo; reforçar as instituições fiscais nacionais para melhorar o debate interno e a apropriação das políticas; e criar um fundo da UE para ajudar os países a gerir melhor os declínios econômicos e disponibilizar os bens públicos essenciais.

Necessidade de reformas ambiciosas

As regras atuais tiveram algum sucesso, sobretudo na conscientização do público quanto à necessidade de manter os déficits fiscais abaixo de 3% do produto interno bruto, melhorando a prestação de contas dos governos. Mas não impediram o acúmulo indesejável de dívida pública e riscos de sustentabilidade fiscal de alguns membros.

Como observamos na crise de dívida soberana europeia, esses riscos ameaçaram a estabilidade da união monetária no passado e continuam a criar vulnerabilidades no presente. Isso ocorreu não obstante inúmeras tentativas de aperfeiçoar as regras numéricas e reforçar a supervisão central empreendidas no decorrer dos anos.

Até certo ponto, a fragilidade das instituições nacionais, as pressões políticas e a grande quantidade de choques negativos prejudicaram a conformidade. Em combinação com as limitações conceituais do quadro, que estabelece tetos para os déficits em períodos difíceis sem oferecer incentivos suficientes para criar amortecedores nos períodos prósperos, isso resultou no acúmulo de desequilíbrios fiscais. O quadro também apresenta um desempenho inadequado na estabilização da produção e não tem mecanismos para disponibilizar bens públicos comuns para os países membros.

Em março de 2020, em resposta à pandemia, a Comissão Europeia acionou a cláusula geral de escape, que permite um desvio temporário das regras fiscais da UE, para que os países membros possam reagir com mais vigor e flexibilidade. Mas o aumento dos déficits elevou os níveis de endividamento ainda mais acima do valor de referência do Tratado de Maastricht, de 60% do PIB em muitos países, criando desafios adicionais na transição de volta às regras existentes.

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A proposta do FMI tem três pilares interconectados:

  • Regras fiscais ao nível da UE baseadas em risco: Embora os atuais valores de referência de 3% de déficit e 60% de endividamento continuem em vigor, a rapidez e agressividade dos ajustes fiscais estariam vinculados ao grau de riscos fiscais. Estes são identificados por uma análise de sustentabilidade da dívida baseada numa metodologia comum desenvolvida por um Conselho Fiscal Europeu novo e independente, ou CFE, em consulta com outras partes importantes. Os países com maiores riscos fiscais precisariam convergir para um saldo fiscal global igual a zero ou positivo nos próximos três a cinco anos. Os países com menores riscos fiscais e endividamento abaixo de 60% teriam mais flexibilidade, mas, ainda assim, teriam de considerar os riscos no seu planejamento. O quadro incentivaria a criação de reservas fiscais, acrescentando um nível considerável de flexibilidade para reagir a choques adversos e seguir uma política contracíclica.
  • Reforço das instituições fiscais nacionais: Todos os países da UE teriam de adotar quadros fiscais de médio prazo e estabelecer tetos plurianuais para os gastos anuais compatíveis com a âncora de saldo global para o período. Conselhos fiscais nacionais independentes desempenhariam um papel mais robusto para reforçar pesos e contrapesos em nível nacional, inclusive calculando ou confirmando projeções macroeconômicas, avaliando riscos fiscais e assegurando a uniformidade dos tetos de gastos e planos fiscais. A Comissão Europeia continuaria a desempenhar o seu papel essencial de vigilância e o CFE serviria como ponto central de uma rede de conselhos fiscais nacionais, ajudando a promover boas práticas e atuando como uma voz independente tanto em relação a riscos de dívida como à execução do quadro.
  • Uma capacidade fiscal bem elaborada para a UE: Seria estabelecida para desempenhar duas funções principais: melhorar a estabilização macroeconômica, sobretudo quando a política monetária está atuando no limite inferior efetivo e permitir a disponibilização de bens públicos comuns no nível da UE, como infraestrutura para mudança climática e segurança energética. Essas duas necessidades tornaram-se mais urgentes em decorrência das preocupações relativas à transição verde e à segurança comum. Um fundo dedicado ao investimento climático é um componente importante da proposta.

A proposta deve ser vista como um pacote de elementos interligados para promover uma reforma eficaz. Requer um relacionamento mutuamente reforçador entre as regras da UE e a implementação nacional, especialmente uma maior apropriação nacional das regras e um alinhamento melhor entre os quadros dos países e as regras da UE. O primeiro requisito poderá ser atendido apenas se houver um equilíbrio entre as necessidades dos países membros e a sua proteção contra efeitos colaterais negativos de outras partes da união. Isto requer uma abordagem baseada em riscos – o primeiro pilar da proposta do FMI. O segundo requisito determina um papel mais ativo do segundo pilar: quadros nacionais significativamente reforçados – com maior capacidade e mandatos de instituições fiscais independentes.

Face à extraordinária incerteza econômica e aos desafios fiscais futuros, a reforma do quadro fiscal da UE não pode esperar. A prorrogação da cláusula geral de escape até 2023 abre uma janela de oportunidade para fazer exatamente isso; mais atrasos forçariam os países a voltar às regras antigas com todos os seus problemas. A oportunidade não deve ser desperdiçada.

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Vítor Gaspar é Diretor do Departamento de Finanças Públicas do FMI desde 2014. Foi Ministro de Estado e das Finanças de Portugal de 2011 a 2013 e ocupou vários cargos em instituições europeias e portuguesas, inclusive os de chefe da BEPA na Comissão Europeia, Diretor Geral de Pesquisas no Banco Central Europeu, Diretor de Estudos Econômicos e Estatísticas no Banco de Portugal e Diretor de Estudos Econômicos no Ministério das Finanças de Portugal.

É Doutor em Economia pela Universidade Nova de Lisboa, onde também recebeu o título de agregado, e licenciado pela Universidade Católica Portuguesa.

Alfred Kammer é Diretor do Departamento da Europa do Fundo Monetário Internacional desde agosto de 2020. Nessa função, supervisiona o trabalho do FMI com a Europa.

Anteriormente, foi Chefe do Gabinete da Diretora-Geral, assessorando-a em questões estratégicas e operacionais e supervisionando as operações da equipe da Direção-Geral. Foi também Subdiretor do Departamento de Estratégia, Políticas e Avaliação, supervisionando o trabalho sobre a estratégia e a política de supervisão do FMI; Subdiretor do Departamento do Oriente Médio e Ásia Central, supervisionando a evolução econômica e as questões do setor financeiro da região; Diretor do Gabinete de Gestão da Assistência Técnica, assessorando a Direção-Geral nas operações de assistência técnica e supervisionando a captação de recursos e as parcerias globais para capacitação; e Assessor do Subdiretor-Geral. Além disso, atuou como representante residente do FMI na Rússia. Desde que ingressou no FMI, trabalhou com países da África, Ásia, Europa e Oriente Médio, e numa ampla gama de questões estratégicas e de política econômica.

Ceyla Pazarbasioglu é Diretora do Departamento de Estratégia, Políticas e Avaliação (SPR) do FMI. Nessa função, lidera o trabalho de direcionamento estratégico do FMI e de formulação, implementação e avaliação das políticas da instituição. Também supervisiona as interações do FMI com outros organismos internacionais, como o G-20 e as Nações Unidas.