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Os governos precisam de políticas fiscais ágeis diante da escalada dos preços dos alimentos e combustíveis

Por Jean-Marc Fournier, Vítor Gaspar, Paulo Medas e Roberto Accioly Perrelli
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As necessidades prementes de gastos por causa da pandemia e da guerra coincidem com níveis de dívida elevada e restrições orçamentárias rigorosas.

Justo quando o aumento da vacinação oferecia alguma esperança, a invasão da Ucrânia pela Rússia prejudicou a recuperação econômica mundial. Um dos efeitos globais mais visíveis foi a aceleração dos preços da energia e dos alimentos, gerando preocupação com possíveis episódios de escassez de alimentos e elevando os riscos de desnutrição e de tensões sociais. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, os preços mundiais dos alimentos deram um salto de 33,6% em março em relação ao ano anterior.

A nova edição do relatório Fiscal Monitor analisa como os governos, diante de uma dívida recorde e do aumento nos custos do endividamento, podem responder melhor às necessidades urgentes. O relatório enfatiza a necessidade de maior cooperação em escala mundial.

Perspectiva fiscal extremamente incerta

As economias em todo o mundo acumularam uma sucessão de legados de choques desde a crise financeira global. As medidas fiscais extraordinárias tomadas em resposta à pandemia resultaram no forte aumento dos déficits fiscais e da dívida pública em 2020.

Além disso, as perspectivas permaneceram incertas à medida que o mundo atravessava uma conjuntura sem precedentes, com a alta da inflação e trajetórias de recuperação cada vez mais divergentes. E então a Rússia invadiu a Ucrânia, agravando enormemente os riscos geopolíticos.

Os déficits e a dívida mundiais estão caindo em relação às máximas históricas, mas os riscos para as perspectivas são excepcionalmente altos e as vulnerabilidades estão aumentando. Espera-se que a dívida pública global caia em 2022 e então se estabilize em cerca de 95% do PIB a médio prazo, 11 pontos percentuais acima dos níveis anteriores à pandemia. A forte alta inesperada da inflação em 2020–21 contribuiu para reduzir os níveis de endividamento; contudo, à medida que a política monetária se torna mais restritiva para conter a inflação, o custo dos empréstimos soberanos aumentará, reduzindo o espaço para os gastos públicos e aumentando a vulnerabilidade da dívida.

Movimento paralelo com uma recuperação desigual 

Nas economias avançadas, projeta-se que os déficits declinem, e as políticas estão em transição, do apoio concedido durante a pandemia para uma transformação estrutural. As perspectivas para as finanças públicas na Europa são excepcionalmente incertas, devido à guerra na Ucrânia e suas repercussões. Na maioria dos mercados emergentes, os déficits deverão diminuir, mas com grandes variações entre os países. Os países de baixa renda, que já sofrem com as sequelas da pandemia, dispõem de muito pouco espaço fiscal para neutralizar o duro golpe sofrido com as repercussões da guerra.

Os diversos choques também trouxeram novos riscos para as finanças públicas. Os governos estão sob pressão para lidar com a alta dos preços da energia e dos alimentos. Para aliviar a carga sobre as famílias, garantir a segurança alimentar e evitar tensões sociais, a maioria dos governos anunciou medidas para limitar os aumentos no mercado interno. Entretanto, tais medidas podem ter um custo fiscal considerável e exacerbar o desalinhamento entre a demanda e a oferta globais, colocando pressão ainda maior sobre os preços internacionais e, possivelmente, levando à escassez de energia ou de alimentos. Esta situação prejudicaria ainda mais os países de baixa renda que dependem da importação de energia e alimentos. 

 Enfrentar a alta dos preços da energia e dos alimentos

Além disso, a luta contra a pobreza sofreu um revés, sobretudo nos países de baixa renda e de mercados emergentes. Em relação às tendências anteriores à pandemia, a crise da Covid-19 deixou mais de 70 milhões de pessoas em todo o mundo em uma situação de extrema pobreza em 2021. Em muitas economias avançadas, as famílias foram protegidas pelo apoio direto do governo ou por programas de retenção de empregos. As famílias gastaram menos e pouparam mais devido ao distanciamento social, restrições à mobilidade e incerteza em relação ao futuro. Esse excesso de poupança constitui um amortecedor importante, mas se for gasto rapidamente, pode acelerar o ímpeto da inflação. A situação é muito mais sombria em outros países com um grande número de pessoas pobres: a alta da inflação poderia elevar ainda mais os índices de pobreza e exacerbar a crise alimentar.

Gestão de uma crise após a outra

Os governos enfrentam opções difíceis nesta conjuntura extremamente incerta. Devem se concentrar nas necessidades de gastos mais urgentes e aumentar a arrecadação para pagar por eles.

Recomendamos estratégias fiscais ágeis, adaptadas às circunstâncias de cada país: 

As respostas do governo à escalada dos preços internacionais das commodities devem dar prioridade à proteção dos mais vulneráveis. Um objetivo fundamental é evitar uma crise alimentar e manter a coesão social. Países com redes de proteção social bem desenvolvidas podem recorrer a transferências em dinheiro temporárias e direcionadas aos grupos mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, permitir o ajuste dos preços no mercado interno. Isso limitará as pressões sobre o orçamento e criará os incentivos corretos para o aumento da oferta (como, por exemplo, o investimento em energias renováveis). Outros países poderiam permitir um ajuste mais gradual dos preços internos e usar as ferramentas existentes para ajudar os mais vulneráveis durante esta crise, além de tomar medidas para fortalecer as redes de proteção.

A alta dos preços dos combustíveis fósseis destaca a urgência de acelerar a transição para energias limpas e renováveis, o que aumentaria a segurança energética e ajudaria a cumprir a agenda climática mais premente – estamos muito distantes da meta de limitar o aquecimento global a 2°C.

Cerca de 60% dos países de baixa renda apresentam um alto risco de sobre-endividamento ou já estão nessa situação. Eles enfrentam as marcas persistentes da Covid-19 e são particularmente vulneráveis à alta dos preços dos alimentos, dada a parcela considerável de gastos com alimentação no orçamento das famílias. Esses países necessitam do apoio da comunidade internacional.

Contudo, a necessidade de uma ação coletiva é mais ampla. A cooperação global é indispensável para combater os problemas prementes e imediatos que o mundo está enfrentando: crises energéticas e alimentares, pandemias atuais e futuras, dívida, desenvolvimento e mudança climática.

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Jean-Marc Fournier é economista na Divisão de Política Fiscal e Supervisão do Departamento de Finanças Públicas do FMI, onde desenvolveu um modelo para avaliar a orientação fiscal e prestou assessoria sobre a matéria para uma série de países, como Bélgica, Côte d’Ivoire, França, Índia, Japão, México e Estados Unidos. Anteriormente, foi economista no Departamento de Economia da OCDE, professor adjunto de econometria e economista no Departamento de Projeções de Curto Prazo do Insee (o instituto de estatísticas francês). É autor de publicações científicas sobre política fiscal, desigualdades de renda, macroeconomia, a crise financeira e econometria. Cursou pós-graduação na École Polytechnique e na Ecole Nationale de la Statistique et de l’Administration Économique.

Vítor Gaspar, cidadão português, é Diretor do Departamento de Finanças Públicas do FMI. Antes de ingressar no FMI, ocupou vários cargos superiores na área de políticas do Banco de Portugal, inclusive, mais recentemente, o de Conselheiro Especial. Foi Ministro de Estado e das Finanças de Portugal de 2011 a 2013. Chefiou o Gabinete de Conselheiros de Política Econômica da Comissão Europeia de 2007 a 2010 e atuou como Diretor-Geral de Estudos Econômicos do Banco Central Europeu de 1998 a 2004. Doutorou-se em Economia pela Universidade Nova de Lisboa, onde cursou o pós-doutorado, conquistando o título de agregado (ou livre-docência), tendo estudado também na Universidade Católica Portuguesa.

Paulo Medas é Chefe de Divisão no Departamento de Finanças Públicas do FMI e supervisiona a produção do Fiscal Monitor. Anteriormente, ocupou vários cargos nos Departamentos da Europa e do Hemisfério Ocidental do FMI. Foi Representante Residente do FMI no Brasil de 2008 a 2011 e liderou missões de capacitação a vários países. Suas principais áreas de estudo são regras fiscais, governança e corrupção, crises fiscais e gestão de recursos naturais.

Roberto Accioly Perrelli é Economista Sênior na Divisão de Política Fiscal e Supervisão do Departamento de Finanças Públicas do FMI, onde também trabalha no Fiscal Monitor. Anteriormente, foi membro das equipes que acompanharam a África do Sul, o Brasil, a Grécia e a Irlanda, entre outros, e liderou o exercício de vulnerabilidade a crises externas baseado no aprendizado de máquina. Durante esse período, acumulou experiência em uma ampla gama de questões de política, como reestruturação da dívida soberana, consolidação fiscal e crise do balanço de pagamentos. É mestre em Estatística e doutor em Economia pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, EUA.